sexta-feira, agosto 21, 2009

“Vento na cara e pés nos pedais!!”

Viva!
Para actualizar as crónicas, continuando a sequência da nossa viagem, vou passar a transcrever o texto que o Hugo escreveu no nosso diário de papel no dia 16 de Agosto:

“197 kms de pista de terra que segue de Banfora, a capital dos Senufos, para Gaoua a capital dos Lobis: Chegamos ao ponto “combinado” de partida da nossa vannette às 7h da manhã.

Telefonamos ao “chóffér” para certificar que tudo estava em ordem, e voilá!Eram 9h quando nos sentamos no autocarro depois das nossas burras e Bobs terem sido embarcadas por volta das 8h30 e terem ido, juntamente com o resto do carrego recolher mais uma rapaziada que faria a viagem até Gaoua connosco.

Enquanto esperávamos, apreciamos um espectáculo raro: um autocarro vindo de Abidjan, na Costa do Marfim, ia em tons de azeviche até mais não! A porta de acesso traseira não fechava à conta das bagagens imensas que eram transportadas, o que fez com que tivesse que ser atada com uma corda para não se abrir.Às 9h45 estávamos a deixar para trás Banfora, nos bancos da frente da vannette – onde habitualmente iriam 4 a 6 pessoas – e são considerados os melhores lugares porque perto da janela e da porta.

Ao km 15 da interminável pista de terra tivemos um furo no pneu da frente do lado direito. As demarches para aliviar a vannette de pessoas; porque a carga permaneceu intocável, resultou na contabilidade de, não menos de 17 adultos e 5 crianças, valor que constitui marcado prejuízo financeiro para a transportadora, uma vez que uma carrinha de transporte no mesmo trajecto, mas em sentido inverso, contabilizou 30 ocupantes.

Nota: estamos a falar de uma carrinha de 9 lugares, ocidentais, 3500 kgs, do tipo Toyota Hyace, ou no caso concreto, uma Hyunday de 1995 com (pelo menos 300000 kms marcados); ficamos sem saber quantas voltas já deu o conta voltinhas.

Trocado o pneu, recomeça o folclore de reentrada (pouco) organizada na dita e partimos em direcção ao nosso destino. A paisagem desta pista de terra é extremamente verdejante, marcadamente do tipo floresta equatorial e pelo caminho, vimos um camaleão a atravessar a estrada.

Estamos alojados no Hotel Hala. As boas notícias são que, apesar da cozinha estar fechada serviram-nos uma omeleta gigantesca, que nos matou a fome. Resta esperar pela água para nos podermos lavar do pó vermelho com que ficamos entranhados nesta viagem de 4 horas no extremo oriental do país.

Amanhã tentamos entrar num autocarro com destino a Ouagadougou. Com o intuito de tentarmos saber os horários, as companhias e os preços praticados, montamos nas burras e fomos tentar encontrar a Gare Routiére. Estamos num sítio tão isolado que a indicação para chegar à estação de camionagem aqui denominada “auto-gare” foi a seguinte: “Depois do Baobá, à direita”. E lá estava direitinho.

“Depois do episódio da diarreia e da viagem na vannette o Hugo estava a atingir o “red line” em relação a África. Não sabíamos nós que o “melhor” episódio estava para acontecer no dia do regresso a Portugal… De facto, no dia 17 estávamos a caminho de Ouaga, capital do BF e da etnia Moshi. Na viagem, feita num autocarro climatizado, com etiquetas nas malas e direito a “máximos” por parte do rapaz que controlava as entradas e saídas e o pagamento dos bilhetes, desfilaram pelo grande palco em DVD, os maiores sucessos da música da Costa do Marfim, no compacto “Abidjan TV Top Show”.

As imagens dos vídeos quase a papel químico uns dos outros, reflectiam, e de certa forma confirmavam a imagem que tínhamos do país vizinho: negros de cabelo e pêra pintados de amarelo oxigenado num estilo muito “Abel Xavier”, abanavam-se com leques de notas, falavam ao telemóvel, usavam relógios sobredimensionados e dourados, passeavam-se em grandes carros e tinham amigas, umas mais, outras menos, feiotas.

Da forma mais pacífica e civilizada possível, fomos por essa apneia a que nos vota o autocarro. Sem poder parar para fotos, para falar com alguém, sem interagir com o mundo novidade, para nós. Lá fora, a paisagem, a estrada, as pessoas sucediam-se com uma pressa só possível num veículo automóvel. O meu dedo, que seguia o percurso no mapa, deslizava como nunca no plástico, seguindo a linha laranja da representação da estrada.

Nas paragens para recolher pessoas, os vendedores de amendoins, ovos, cebolas, bebidas aproximavam-se do autocarro para vender. As janelas podem-se abrir para fazer as transacções. No Burkina, umas pessoas vivem para produzir e comercializar. O modo de vida é o mais básico que se possa imaginar. Produz-se e vende-se. Cada um produz um bem, vende, e utiliza o proveito dessa venda para comprar outro bem que não produza. A lógica de vida é hoje em dia ameaçada por aqueles que na procura do domínio de toda a cadeia produzem, vendem, vários produtos ou bens, centralizando a produção e as receitas, condenando os pequenos produtores/vendedores de um só produto. Deixam de ser “necessários” e deixam de conseguir vender. O propósito da subsistência acaba por ser o único que os faz produzir, pela incapacidade de escoar os seus produtos, e isso não é suficiente. É também essa a razão para que os burkinabes comecem a tentar obter receitas por outras vias.

Apesar da forma primitiva como abordam os turistas (porque já perceberam que o seu território e riqueza etnológica tem um valor que outros valorizam) alguns já conseguiram encaixar no sistema turístico (arcaico) que se está a criar, liderado de forma pontual por operadores e investidores espanhóis e franceses. Por outro lado, e infelizmente, a outra via é a do dinheiro fácil associado a esse mesmo turismo. Em Banfora encontramos muitos “casais” de mulheres brancas com negros, locais. É o reflexo de uma falta de saber, por um lado, associado a uma procura muito específica, do outro, e que infelizmente parece ter pernas para andar. Tivemos a confirmação desta constatação depois, em Ouaga.

As diferenças entre as etnias dominantes em cada uma das regiões do país, ditam também a permeabilidade das mesmas ao mundo novo e ocidentalizado e às novas formas de vida. Os Bobos (da região de Bobo-Dioulasso) são tidos como mais preguiçosos e “aderentes” das formas fáceis de ganha-pão. Os Moshis (da região de Ouagadougou) são mais trabalhadores. Assim se justifica o facto da abordagem que, especialmente eu, senti por parte dos homens em Bobo que, a título de exemplo me abordaram no mercado da cidade, aos gritos, “Mulher branca, mulher branca!!” e o facto de existirem alguns relatos (muito poucos, diga-se) de assaltos a turistas mas, todos derivado de “desatenções” por parte dos mesmos em Bobo e nada disto se verificar em Ouaga. De facto, os burkinabes, não são um povo “mau”, mas apesar do nome do país reflectir o seu historial de fidelidade aos seus hábitos, costumes e tradições, o facto é que comparativamente ao Mali, parece ter aceite mais facilmente o modo de vida ocidental. Vê-se principalmente na forma de vestir, onde as mulheres já não optam pelas combinações de saia e blusa tradicionais (os Bobos), preferindo calças de ganga, t-shirts, e outros adornos que nada têm de africano.

A nossa chegada a Ouaga foi relativamente pacífica e a ida até ao hotel, também. Optamos por seguir um rapaz de mota que nos mostrou os atalhos que evitavam os desvios a que obrigavam algumas obras na cidade. A capital do BF é bastante tranquila e tem um ambiente muito descontraído. Ganhou a minha preferência. Mesmo tendo os comerciantes que nos seguem para vender qualquer coisa, anda-se mais ou menos descontraidamente pelas ruas, tendo em conta a nossa cor de pele.

O hotel mesmo sem ter televisão no quarto (que nos privava desse fenómeno televisivo que é q Rádio Televisão Burkinabe, foi (de todos, também) o mais simpático, com um jardim muito agradável com piscina e espreguiçadeiras, muito bem decorado com artefactos africanos. Depois do almoço, o resto do dia foi passado a conhecer uma parte da cidade e ainda a tentar arranjar forma de antecipar o regresso.

A nossa “volta” já estava terminada e não havia razão para passarmos muito tempo na capital. Tratamos também de negociar e comprar cartões para embalar as bicicletas na viagem, tarefa que realizamos com sucesso depois de arranjarmos um “dealer” que nos foi mostrando as várias hipóteses que tínhamos para arranjar cartão. Com a situação dos bilhetes tratados, foi altura de, num trabalho de verdadeiros artesãos, empacotar as bicicletas e o Dylan (o Marley seguiu no saco específico do BOB).

O dia do regresso, de manhã, foi dedicado a “ballades” pela cidade, pela Village des Artisans (local onde se concentram uma série de artesãos burkinabes e africanos em geral, para produzir e vender os seus trabalhos). Última hipótese também para eu comprar tecidos “regionais” e saber da hipótese de me fazerem (em tempo record) um Bobo (fato tradicional africano). A situação foi, como não poderia deixar de ser, à africana: depois de ter pago pelos tecidos, fui perguntar se conheciam algum lá na loja, alguém que me pudesse fazer o fato. Telefonámos e combinamos encontrarmo-nos na frente do estabelecimento. O Joseph, alfaiate, chegou e depois de conversarmos, tirou-me as medidas ali no meio da rua, o Hugo ajudou a tomar notas dos números mágicos, e depois de explicar qual era o “modelito” (com mangas, sem mangas, saia curta, comprida) combinamos o preço que, para nosso espanto, ficou pela irrisória quantia de cerca de 8 euros. O fatinho ficou pronto pelas 14 horas, altura em que foi entregue no hotel. Tiradas as medidas naquelas circunstâncias, o trabalho dir-se-ia que ficou perfeito! Falta só acertar numa ou outra “curva” mais marota, mas de resto sem primeiras, nem segundas provas, o trabalho está muito bom.

Almoço e combinações com taxistas, e estávamos prontos para carregar a “voiture” que teve de fazer 2 viagens para chegar ao aeroporto com as bagagens todas. Fomos cedo para o aeroporto para ter a certeza que conseguíamos embalar as bicicletas com plástico, tarefa que conseguimos com sucesso apesar da tecnologia não passar de embrulhar as bagagens com “Glad”, tal como fazemos nas nossas cozinhas, com os alimentos.

Na altura de poder entrar para o check-in, na primeira das sete passagens “normais” por controlos policiais, fomos logo surpreendidos por uma novidade que nos custaria mais uns cabelos brancos: o nosso visto (que tínhamos feito na entrada no BF, que pedimos que tivesse a duração de um mês) tinha caducado no dia anterior, porque tinha sido feito apenas com a duração de 7 dias.

Um grande “obrigadinho” ao senhor agente da fronteira em Faramana que foi tão simpático!

A crise de nervos durou nada mais, nada menos, que 2h45 para passarmos por uma autêntica prova de fogo, numa corrida contra o tempo para apanhar o avião. Depois da apreciação, por parte do chefe dos polícias, que nos informou que teríamos que fazer um novo visto para poder sair do país, o Hugo deslocou-se ao balcão da “alfândega” para saber se seria possível fazê-lo ainda nesse dia para poder apanhar o avião. O stress aumentou quando, no vagar característico de quem pouco tem a ver com os problemas dos outros, o indivíduo informou que o visto estaria pronto no dia seguinte. Porreiro, porque os aviões de Ouaga para Paris e de Paris para Lisboa estavam cheios até ao dia 23 de Agosto. Depois, também numa lógica que tem mais a ver com o que costumamos ouvir dizer de África, o Hugo soube que sim, que se faria o visto ainda nesse dia, que poderia apanhar o avião, mas que precisava de 2 fotos e de pagar novamente pelos vistos (acabamos por pagar o preço de 4 vistos, em vez de 2). Ainda bem que levávamos fotos de sobra connosco, porque aquilo que faria sentido para nós, que seria fazer uma extensão do visto, não servia. Teve mesmo de ser um novo visto e de pagar novamente.

“Tudo se resolve desde que haja dinheiro”, foi o que disseram ao Hugo.

Assinar, carimbar, pagar e voltar a assinar custou-nos mais uma crise de nervos. A sequência de procedimentos demorou uma eternidade. “Entremeada” com a troca de turno do funcionário, o atendimento ao balcão dos passageiros de um voo que chegou entretanto, de chamadas de telemóvel, e das paragens momentâneas para se recordar em que fase ia, o que ia fazer, o trabalho foi concluído.

Finalmente (passadas as tais 2h45), depois de passar por filas onde já tínhamos estado, por várias revistas de bagagens (radiografia e “apalpação”), e ainda os inúmeros controlos do cartão de embarque e do visto, tudo feito com minúcia pelos olhos de lince da polícia, entramos no avião. Quase nem parecia ser verdade…

Escrevo este último post, com um “amargozinho de boca” por ter terminado, e por isso, ser mais difícil de teclar…um pequeno acto de contrição pela eventual falta de imaginação ou qualidade do relato…

Estamos já, como sabem, em solo lusitano, com a bagagem “mais carregada” do que quando fomos, contentes com o itinerário, com a preparação da mesma que se verificou muito à altura, e ainda muitas histórias para contar, e ainda fotos e filmes para ilustrar os momentos que deixam saudades (e os que não deixam, também)!!

Como não poderia deixar de ser, a frase é minha e mantém-se válida, nesta, e em situações futuras, como um desejo para todos quantos entendem que a velocidade e comprimento de uma pedalada permite “ganhar mais terra”:

“Vento na cara e pés nos pedais!!”

Frankie Goes to Hollywood - Welcome To The Pleasure Dome

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